A penhora de quotas e o princípio da affectio societatis


Autor: Victor Pellegrino da Silva Dornaus - De Vivo, Withaker e Castro Advogados / Data: 11 de agosto de 2014
A sociedade limitada representa o tipo societário adotado pelos empreendedores brasileiros na grande maioria dos casos, muito por conta de sua contratualidade: os sócios assumem obrigações mútuas para o cumprimento das finalidades sociais, atuando como verdadeiros parceiros negociais, e estabelecem as regras de estrutura e funcionamento da empresa pelas quais permanecerão reciprocamente obrigados nos termos do contrato social, ato constitutivo da sociedade.

De fato, toda sociedade empresária nasce do acordo de vontade de seus sócios, de uma combinação de esforços para exploração de atividade econômica em parceria – independentemente do tipo societário escolhido. Chamado pela doutrina de affectio societatis, animus contrahendi societatis ou ânimo societário, diz respeito ao interesse comum em constituir e manter uma sociedade para a consecução de determinado fim.

A affectio societatis apresenta-se como um importante princípio do direito societário, tendo o Superior Tribunal de Justiça afirmado se tratar de “elemento específico do contrato de sociedade comercial”, que se caracteriza “como uma vontade de união e aceitação das áleas comuns do negócio” (1) . Como se verá adiante, a importância da colaboração e confiança mútua entre os sócios em relação ao fim social pretendido será maior ou menor, de acordo com o tipo societário adotado, ponto em que se diferenciam as sociedades contratuais e estatutárias.

Nas sociedades contratuais, os sócios mantêm claras relações jurídicas entre si, de forma que as características pessoais dos contratantes torna-se um elemento essencial para sua existência. Caracteriza-se, portanto, pela pessoalidade de sua organização societária (intuitu personae), na medida em que apenas pode ser mantida se preservada a harmonia entre os sócios contratantes, que atuarão em conjunto para a realização do objeto social. Em contrapartida, nas sociedades estatutárias, a identidade do sócio apresenta-se, regra geral, apenas como um elemento acessório, sendo constituídas primordialmente em função do capital a ser investido e sem maiores preocupações com a pessoa de seus titulares (intuitu pecuniae).

Nesse sentido, a transferência de participação entre os sócios ou em favor de terceiros estará sujeita a maior ou menor limitação legal, a depender do tipo societário escolhido. Em se tratando de uma sociedade anônima, segue-se o princípio da livre circulação de ações, pelo qual a entrada de estranhos ao quadro social independe da anuência dos demais acionistas (2). Na sociedade limitada, quando omisso o contrato social, a oposição de titulares de mais de um quarto do capital social é suficiente para impedir a transferência de quotas para terceiro (3), hipótese em que esta é entendida como uma ‘sociedade de pessoas’. Por outro lado, também é possível que o contrato social autorize a livre cessão de quotas para terceiros, caracterizando assim uma ‘sociedade de capital’.

Em virtude da feição personalista da sociedade limitada, surge o questionamento a respeito da possibilidade de penhora de quotas por dívidas particulares de sócio: poderia o credor, estranho ao quadro social, adquirir as quotas do executado e tornar-se sócio de uma sociedade contratual?

Primeiramente, cumpre esclarecer que o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens, presentes e futuros, conforme estabelece o Art. 591 do Código de Processo Civil (4). O mesmo diploma legal não faz qualquer menção à quota de sociedade limitada ao dispor sobre os bens absolutamente impenhoráveis, sendo, portanto, admitida sua penhora.

Mesmo no caso do contrato social exigir a anuência dos demais sócios para a entrada de terceiro na sociedade, a jurisprudência aceita a penhora de quotas (5). Isso porque a responsabilidade patrimonial é um princípio de ordem pública, que evidentemente se sobrepõe à eventual oponibilidade de convenção particular entre os sócios; o credor não pode ter seu legítimo interesse frustrado em virtude de limitação que a lei não criou.

Embora seja admitida a penhora de quotas, isso não importa necessariamente no ingresso do credor ao quadro social, haja vista que a lei oferece alternativas para a satisfação de seu crédito com a preservação da affectio societatis: (i) a execução pode recair sobre os lucros aos quais o executado teria direito, até o montante da dívida, de acordo com o Art. 1.026, caput, do Código Civil (6); (ii) a sociedade pode remir a execução, nos termos do Art. 651 do Código de Processo Civil (7); (iii) a sociedade pode ser intimada pelo juízo da execução, assegurando preferência aos sócios para adjudicarem as quotas penhoradas, de acordo com o Art. 685-A, §4º do Código de Processo Civil (8); ou (iv) no caso de não ocorrer solução satisfatória, o credor pode requerer a dissolução parcial da sociedade, com a liquidação da quota do devedor, cujo valor, após apurado na forma da lei, será depositado no juízo da execução, conforme determina o parágrafo único do Art. 1.026, do Código Civil (9).

Ante o exposto, percebe-se como tais alternativas buscam solucionar o antagonismo dos interesses envolvidos: de um lado, o legítimo credor que busca a satisfação de seu crédito não pode ser prejudicado por um entrave sem previsão legal; de outro, os sócios que almejam a manutenção da sociedade não podem ser forçados a aceitar a entrada de um estranho em seu empreendimento, o que descaracterizaria sua própria natureza constitutiva.

(1) STJ–Ac. unân. da 3ª T. publ. no DJ de 15-4-96, pág. 11.531–Agr. Reg. no Agr. 90.995- RS–Rel. Min. Cláudio Santos–Advs.: Cláudio Leite Pimentel e Luiz Carlos E. Piva. (2) “Art. 36. O estatuto da companhia fechada pode impor limitações à circulação das ações nominativas, contanto que regule minuciosamente tais limitações e não impeça a negociação, nem sujeite o acionista ao arbítrio dos órgãos de administração da companhia ou da maioria dos acionistas. Parágrafo único. A limitação à circulação criada por alteração estatutária somente se aplicará às ações cujos titulares com ela expressamente concordarem, mediante pedido de averbação no livro de ‘Registro de Ações Nominativas’”. (Lei Nº6.404/1976) (3) Art. 1.057, caput: Na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social. (Lei Nº10.406/2002) (4) Art. 591. O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei. (Lei Nº5.869/1973) (5) "Esta Corte já firmou entendimento que é possível a penhora de quota social, inclusive, a previsão contratual de proibição à livre alienação das quotas de sociedade de responsabilidade limitada não impede a penhora de tais quotas para garantir o pagamento de dívida pessoal de sócio. Isto porque, referida penhora não encontra vedação legal e nem afronta o princípio da affectio societatis, já que não enseja, necessariamente, a inclusão de novo sócio.” (STJ – 3ª Turma - AgRg no AREsp 231266 / SP - 2012/0194699-8 – Relator Min. SIDNEI BENETI. 10/06/2013) (6) Art. 1.026, caput: O credor particular de sócio pode, na insuficiência de outros bens do devedor, fazer recair a execução sobre o que a este couber nos lucros da sociedade, ou na parte que lhe tocar em liquidação. (Lei Nº10.406/2002) (7) Art. 651. Antes de adjudicados ou alienados os bens, pode o executado, a todo tempo, remir a execução, pagando ou consignando a importância atualizada da dívida, mais juros, custas e honorários advocatícios. (Lei Nº5.869/1973) (8) Art. 685-A. É lícito ao exeqüente, oferecendo preço não inferior ao da avaliação, requerer lhe sejam adjudicados os bens penhorados. (...) § 4o No caso de penhora de quota, procedida por exeqüente alheio à sociedade, esta será intimada, assegurando preferência aos sócios. (Lei Nº5.869/1973) (9) Parágrafo único. Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor requerer a liquidação da quota do devedor, cujo valor, apurado na forma do art. 1.031, será depositado em dinheiro, no juízo da execução, até noventa dias após aquela liquidação. (Lei Nº10.406/2002)

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