A penhora de quotas e o princípio da affectio societatis
De fato, toda sociedade empresária nasce do acordo de vontade de seus sócios, de uma combinação de esforços para exploração de atividade econômica em parceria – independentemente do tipo societário escolhido. Chamado pela doutrina de affectio societatis, animus contrahendi societatis ou ânimo societário, diz respeito ao interesse comum em constituir e manter uma sociedade para a consecução de determinado fim.
A affectio societatis apresenta-se como um importante princípio do direito societário, tendo o Superior Tribunal de Justiça afirmado se tratar de “elemento específico do contrato de sociedade comercial”, que se caracteriza “como uma vontade de união e aceitação das áleas comuns do negócio” (1) . Como se verá adiante, a importância da colaboração e confiança mútua entre os sócios em relação ao fim social pretendido será maior ou menor, de acordo com o tipo societário adotado, ponto em que se diferenciam as sociedades contratuais e estatutárias.
Nas sociedades contratuais, os sócios mantêm claras relações jurídicas entre si, de forma que as características pessoais dos contratantes torna-se um elemento essencial para sua existência. Caracteriza-se, portanto, pela pessoalidade de sua organização societária (intuitu personae), na medida em que apenas pode ser mantida se preservada a harmonia entre os sócios contratantes, que atuarão em conjunto para a realização do objeto social. Em contrapartida, nas sociedades estatutárias, a identidade do sócio apresenta-se, regra geral, apenas como um elemento acessório, sendo constituídas primordialmente em função do capital a ser investido e sem maiores preocupações com a pessoa de seus titulares (intuitu pecuniae).
Nesse sentido, a transferência de participação entre os sócios ou em favor de terceiros estará sujeita a maior ou menor limitação legal, a depender do tipo societário escolhido. Em se tratando de uma sociedade anônima, segue-se o princípio da livre circulação de ações, pelo qual a entrada de estranhos ao quadro social independe da anuência dos demais acionistas (2). Na sociedade limitada, quando omisso o contrato social, a oposição de titulares de mais de um quarto do capital social é suficiente para impedir a transferência de quotas para terceiro (3), hipótese em que esta é entendida como uma ‘sociedade de pessoas’. Por outro lado, também é possível que o contrato social autorize a livre cessão de quotas para terceiros, caracterizando assim uma ‘sociedade de capital’.
Em virtude da feição personalista da sociedade limitada, surge o questionamento a respeito da possibilidade de penhora de quotas por dívidas particulares de sócio: poderia o credor, estranho ao quadro social, adquirir as quotas do executado e tornar-se sócio de uma sociedade contratual?
Primeiramente, cumpre esclarecer que o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens, presentes e futuros, conforme estabelece o Art. 591 do Código de Processo Civil (4). O mesmo diploma legal não faz qualquer menção à quota de sociedade limitada ao dispor sobre os bens absolutamente impenhoráveis, sendo, portanto, admitida sua penhora.
Mesmo no caso do contrato social exigir a anuência dos demais sócios para a entrada de terceiro na sociedade, a jurisprudência aceita a penhora de quotas (5). Isso porque a responsabilidade patrimonial é um princípio de ordem pública, que evidentemente se sobrepõe à eventual oponibilidade de convenção particular entre os sócios; o credor não pode ter seu legítimo interesse frustrado em virtude de limitação que a lei não criou.
Embora seja admitida a penhora de quotas, isso não importa necessariamente no ingresso do credor ao quadro social, haja vista que a lei oferece alternativas para a satisfação de seu crédito com a preservação da affectio societatis: (i) a execução pode recair sobre os lucros aos quais o executado teria direito, até o montante da dívida, de acordo com o Art. 1.026, caput, do Código Civil (6); (ii) a sociedade pode remir a execução, nos termos do Art. 651 do Código de Processo Civil (7); (iii) a sociedade pode ser intimada pelo juízo da execução, assegurando preferência aos sócios para adjudicarem as quotas penhoradas, de acordo com o Art. 685-A, §4º do Código de Processo Civil (8); ou (iv) no caso de não ocorrer solução satisfatória, o credor pode requerer a dissolução parcial da sociedade, com a liquidação da quota do devedor, cujo valor, após apurado na forma da lei, será depositado no juízo da execução, conforme determina o parágrafo único do Art. 1.026, do Código Civil (9).
Ante o exposto, percebe-se como tais alternativas buscam solucionar o antagonismo dos interesses envolvidos: de um lado, o legítimo credor que busca a satisfação de seu crédito não pode ser prejudicado por um entrave sem previsão legal; de outro, os sócios que almejam a manutenção da sociedade não podem ser forçados a aceitar a entrada de um estranho em seu empreendimento, o que descaracterizaria sua própria natureza constitutiva.
(1) STJ–Ac. unân. da 3ª T. publ. no DJ de 15-4-96, pág. 11.531–Agr. Reg. no Agr. 90.995- RS–Rel. Min. Cláudio Santos–Advs.: Cláudio Leite Pimentel e Luiz Carlos E. Piva. (2) “Art. 36. O estatuto da companhia fechada pode impor limitações à circulação das ações nominativas, contanto que regule minuciosamente tais limitações e não impeça a negociação, nem sujeite o acionista ao arbítrio dos órgãos de administração da companhia ou da maioria dos acionistas. Parágrafo único. A limitação à circulação criada por alteração estatutária somente se aplicará às ações cujos titulares com ela expressamente concordarem, mediante pedido de averbação no livro de ‘Registro de Ações Nominativas’”. (Lei Nº6.404/1976) (3) Art. 1.057, caput: Na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social. (Lei Nº10.406/2002) (4) Art. 591. O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei. (Lei Nº5.869/1973) (5) "Esta Corte já firmou entendimento que é possível a penhora de quota social, inclusive, a previsão contratual de proibição à livre alienação das quotas de sociedade de responsabilidade limitada não impede a penhora de tais quotas para garantir o pagamento de dívida pessoal de sócio. Isto porque, referida penhora não encontra vedação legal e nem afronta o princípio da affectio societatis, já que não enseja, necessariamente, a inclusão de novo sócio.” (STJ – 3ª Turma - AgRg no AREsp 231266 / SP - 2012/0194699-8 – Relator Min. SIDNEI BENETI. 10/06/2013) (6) Art. 1.026, caput: O credor particular de sócio pode, na insuficiência de outros bens do devedor, fazer recair a execução sobre o que a este couber nos lucros da sociedade, ou na parte que lhe tocar em liquidação. (Lei Nº10.406/2002) (7) Art. 651. Antes de adjudicados ou alienados os bens, pode o executado, a todo tempo, remir a execução, pagando ou consignando a importância atualizada da dívida, mais juros, custas e honorários advocatícios. (Lei Nº5.869/1973) (8) Art. 685-A. É lícito ao exeqüente, oferecendo preço não inferior ao da avaliação, requerer lhe sejam adjudicados os bens penhorados. (...) § 4o No caso de penhora de quota, procedida por exeqüente alheio à sociedade, esta será intimada, assegurando preferência aos sócios. (Lei Nº5.869/1973) (9) Parágrafo único. Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor requerer a liquidação da quota do devedor, cujo valor, apurado na forma do art. 1.031, será depositado em dinheiro, no juízo da execução, até noventa dias após aquela liquidação. (Lei Nº10.406/2002)
Relacionados
-
Racismo Estrutural: Desconstruindo as Normas Dominantes Corporativas
30 de setembro de 2024
Autor: Jhady Reis e Pedro Medeiros
A conscientização sobre o racismo estrutural é um passo crucial para promover mudanças significativas nas instituições e ambientes corporativos. Reconhecer que o racismo vai além das atitudes individuais e está enraizado nas estruturas e sistemas que moldam a vida cotidiana é fundamental para abordar a desigualdade de maneira eficaz.
Ler artigo -
Superior Tribunal de Justiça decide que ANVISA não é competente para restringir publicidade de medicamentos
5 de setembro de 2024
Autor: Isabella Martinho Eid
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 2035645/DF, sob relatoria da Ministra Regina Helena Costa, decidiu que a ANVISA deve observância aos limites estabelecidos na Lei Federal nº 9.294/1996, a qual rege a publicidade de medicamentos.
Ler artigo -
Planejamento patrimonial e sucessório: a progressividade do ITCMD
5 de setembro de 2024
Autor: Claudia Baptista Lopes
Como amplamente noticiado, a reforma tributária aprovada pelo Congresso Nacional prevê a progressividade das alíquotas do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, modificando o cenário atual em muitos Estados.
Ler artigo